quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Agarra que é feminista

Ainda mal o comecei, mas a avaliar pelo tempo que tem estado a marinar na minha mente e pelo número de vezes que já tive ganas de o lançar, este post vai levar tempo a ser escrito. Por mim, tudo bem; tenho o fim-de-semana todo pela frente.

Já por duas ou três vezes toquei no assunto, quase sempre relacionado com os meus estudos. Mas a igualdade de género tem vindo a adquirir uma parte demasiado grande dos meus pensamentos, da minha perspetiva da vida e do mundo, e do que eu quero fazer no futuro. Merece, pois, ocupar um espaço maior na minha escrita. 

Este blog é por vezes demasiado ligeiro, com mais aleatoriedades, reviews de chás e baboseiras sobre chocolates quentes do que eu me atrevo a admitir e, tirando um ou outro post sobre considerações mais profundas sobre o futuro - o meu futuro, entenda-se - não relata nenhuma das minhas lutas interiores de convicções. E o feminismo, como já se viu, é talvez a maior delas. Não era, mas de há uns anos para cá tem vindo a rastejar sorrateiro pelos meus sentidos, fazendo cócegas à minha inteligência, suscitando mais dúvidas do que esclarecimentos, mas trazendo à baila uma lógica muito diferente do senso comum mas que faz tão mais sentido ao que observo à minha volta todos os dias.

Já aqui tinha dito uma vez como as questões de igualdade de género me suscitaram interesse pela primeira vez. Lembro-me perfeitamente de em 2007, por altura da assinatura do Tratado de Lisboa e quando Portugal detinha a presidência do Conselho Europeu, me ter vindo parar às mãos uma capa com panfletos sobre a Presidência, com um cd pequenino que continha as prioridades políticas de Portugal para a Europa, e uma delas ser distintamente a continuação da luta pela igualdade de género. E lembro-me de achar aquilo surpreendente e maravilhoso ao mesmo tempo, sem saber ainda explicar bem porquê. Uma espécie de gut feeling me dizia que aquela era a direção certa a seguir.

Entretanto, a minha paixão, curiosidade e ambição pela União Europeia definiu-se e apurou-se, e numa das minhas leituras anteriores ao ingresso na King's, descobri logo que a minha dissertação final de Mestrado teria que versar sobre direitos das mulheres. E versou. Desde então, vi-me obrigada a ler muito na área, aprender ainda mais, descobrir os variados campos onde a igualdade de género ainda não é uma realidade (todos. Menos o da lei, talvez. Mas os hábitos, como se sabe, são sempre os últimos a mudar) e conciliar a minha visão académica com a minha visão feminista.

Agora que olho para trás é que me apercebo como os dois campos da igualdade de género que sempre me fizeram borbulhar mais o sangue foram precisamente os que escolhi como trabalho/estudo: 

- a violência, doméstica mas não só, contra as mulheres, que foi o que impulsionou a minha intenção de estagiar na APAV. Normalmente, eu sou uma pessoa muito serena, controladinha nas suas emoções e ações, no domínio sobre mim, e por isso mesmo lembro-me perfeitamente de ver o Bordertown, e acabar o filme a soluçar, cheia de calafrios e um horror que me abanou até à alma. E pensar: "Isto não é normal. Se eu não tenho nenhum trauma de violência, como é que é possível isto me afetar desta maneira?". E chegar à conclusão que ali estava a única e verdadeira causa com a qual eu alguma vez me podia indignar a sério, ao ponto de agir.

- a divisão do trabalho doméstico. Esta agora metida assim por baixo da da violência até parece um bocado mal, pontos diferentes de gravidade, se calhar... Mas se há coisa que sempre me mexeu com os nervos foi a questão de levar a roupa, fazer o jantar, fazer a cama, ir às compras, mudar fraldas, dar biberões, ir pôr à escola, passar a ferro, etc etc serem coisas de mulher. Como é que num casal onde ambas as pessoas trabalham fora de casa continua a ser da responsabilidade da mulher? Como é que isto parece justo seja a quem for? Também a propósito disto, lembro-me agora de uma professora de História no 10º ano, que não tinha mais de 30 anos e dona de uma energia contagiante, relatar muito bem-disposta que não senhor, lá em casa fazia-se tudo a meias, ela cozinhava, o marido passava a ferro; ela punha roupa a lavar, ele aspirava o chão. E eu ganhar uma admiração daquelas do género inalcançáveis, "quando for grande quero ser assim" mas ter-se toda a certeza que é preciso muita sorte para calhar com um homem daqueles. Hoje já penso bem diferente, e que não passa pela sorte mas sim pelo bom senso e não espero menos que a sua quota-parte do trabalho doméstico feito. Que - surpresa! - é pelo menos metade: 2 a dividir por 2 dá 1. Que é metade de 2 (ok, acho que já se percebeu). Mas porque entendo que enquanto não houver divisão perfeita neste campo as mulheres nunca vão poder escolher livremente carreira ou família ou ambas, e porque surpreendentemente a UE já legislou sobre isto, foi o tema da minha dissertação de Mestrado.

Estas são duas boas razões para uma pessoa ser feminista. A palavra está conotada com um sentido pejorativo que leva muitas mulheres a afirmarem que acreditam que há ainda muito a fazer no campo da liberdade das mulheres "mas eu não sou feminista". Pensa-se em mulheres histéricas, zangadas com o mundo e com os homens, de cabelo rapado e a queimar sutiãs. É do género da ideia de que os comunistas comem criancinhas ao pequeno-almoço. Eu não tenho nada contra feministas radicais que gritam muito, rapam o cabelo e queimam sutiãs; pelo contrário. Tenho uma profunda admiração por este grupo, por exemplo, que cultiva ódios um pouco por todo o lado mas que chocam e abanam o establishment até às entranhas, com a noção muito radical de que o corpo da mulher lhe pertence a ela somente:



Só tenho pena de não ter a coragem delas. Mas ser feminista não é nada mais do que acreditar que todas as pessoas devem ter os mesmos direitos, a mesma liberdade, as mesmas oportunidades e o mesmo tratamento, tenham elas uma pilinha ou um pipi. Mas depois entra-se no campo da grande frase "mas os homens e as mulheres são diferentes, ponto." Aparentemente são, sim. Mas quanta dessa diferença é biológica e quanta é socialmente construída? Aqui é que reside a verdadeira questão: saber separar as diferenças fisiológicas e óbvias, das que são assimiladas desde a nascença, pela convivência em sociedade, e que se traduzem em todo um conjunto de regras que ditam o que é "ser mulher" e o que é "ser homem". E as diferenças fisiológicas, tenho-me vindo a aperceber que são pouco mais do que as diferenças que há de um indivíduo para outro.

O post já vai longo e por isso reservo a crítica do livro O Segundo Sexo da Simone de Beauvoir, o verdadeiro instigador deste post, para outro dia. E este blog vai decididamente tomar um caráter mais discutidor porque ele sempre foi catártico e meter as ideias em texto ajuda a desenrolar o novelo emaranhado chamado FEMINISMO que reside na minha cabeça e que todos os dias adquire um novo nó.




S.

4 comentários:

  1. Gostei muito deste texto, ainda por cima escrito por uma moça mai'nova que eu, e de uma geração que tantas vezes já ouvi dizer 'eu não sou feminista, sou feminina'. Olha, eu sou ambas. As duas. Não é palavrão, o feminismo; lutar pela igualdade de género ainda faz muito, muito sentido. E ainda outro dia dizia a me mate que achava notável as novas feministas e a sua coragem de se mostrarem de peito nu a reclamar direitos. É uma forma de chamar atenção, de chocar, mas é também uma forma de exibir uma total libertação e autonomia. Me likes.
    Ainda não li O Segundo Sexo, mas admiro imeeenso a Simone. A minha edição é uma tradução mazita, brasileira, não motiva muito. Mas escreve, escreve, que eu leio.

    (e muita sorte e êxito no teu trabalho, a sério)

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  2. Izzie, muito obrigada. Sabe mesmo bem receber feedback positivo; nunca se sabe quem nos lê e falar de feminismo ainda é mais controverso do que devia ser. O livro da Beauvoir, que na verdade são dois volumes (e eu ainda só li o primeiro mas deu-me já material com fartura para pensar) é muito bom, mesmo. E traz tantos assuntos sobre a condição da mulher à baila que merece não um mas vários posts. E o que é incrível é uma coisa que foi escrita no final dos anos 40 ser ainda tão relevante.
    Mais uma vez obrigada!

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  3. D.S. As mulheres precisam muito que se volte a falar de feminismo, sem vergonha. Andam de tal maneiras enredadas nas exigências desta sociedade, de serem bonitas, sexys, excelentes profissionais, mães, etc, etc que às vezes deixam de se pensar como mulheres, como seres humanos, com os mesmo direitos que os homens. E enquanto as mulheres não ganharem essa dignidade de seres humanos, exactamente ao mesmo nível que os homens, vão continuar a achar que merecem menos que estes. Porque é que nos conformamos em ganhar salários mais baixos que os homens, porque é que achamos normal que a maior parte dos cargos de direcção sejam exercidos por homens e muitas, muitas outras situações de discriminação? Temos muito que exigir, nós mulheres! Recordo aqui uma situação de há muitos anos quando no boletim de inscrição no secundário, resolvi escrever na minha filiação o nome da minha mãe em primeiro lugar. O funcionário da secretaria da escola disse-me que estava mal que primeiro era o nome do pai e agora já não me lembro bem como a coisa acabou, mas penso que me obrigaram a alterar a ordem.

    Aguardo ansiosamente as sua próximas reflexões sobre feminismo.

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  4. Blan, obrigada pelo comentário. Este é definitivamente um tema que vai passando a figurar muito mais no meu blog. É algo que me fascina, entusiasma e indigna pela sua tão fraca popularidade junto das mulheres (jovens e não só) que acham que muito simplesmente já não precisamos do feminismo, ou - pior - que nunca precisámos dele realmente.

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